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sábado, 21 de maio de 2011

Evoluídos para correr

“Correr estraga o joelho.” ”É muito impacto.” “Natação é o esporte completo.” Ouvimos de tudo por aí.

Vou mostrar aqui um trecho de um documentário da BBC. Nele você verá três africanos caçando o segundo maior antílope, o kudu (Tragelaphus strepsiceros). Apesar de não ser rápido dentre os antílopes, é bem mais rápido que qualquer ser humano. Oras, Usain Bolt não conseguiria alcançar sequer um esquilo. Somos comparativamente lerdos. Mesmo assim, esses três homens, sem veículos e apenas com lanças, perseguem e matam o animal.

(Clicando no ícone  cc  do vídeo, você pode escolher legendas em inglês ou português. #trabalhodecorno)

Moral da história: desde que descemos das árvores e nos aventuramos sobre dois pés pela savana, há uns 2,5 milhões de anos, diversas adaptações ocorreram que nos permitiram fazer o que Koroe faz no vídeo. Lanças, arcos e flechas, sapatos… tudo isso são invenções recentes, de uns 50.000 anos. Durante todo o resto da existência de nossos ancestrais, sobrevivemos e deixamos descendentes, "muito bem, obrigado", sem precisarmos desses apetrechos.

É claro que, com o crescimento dos nossos cérebros permitido pelo consumo de carne (foi mal, Aquino), pudemos criar diversas ferramentas que facilitaram o nosso desempenho de caçador e, eventualmente, nosso desempenho como espécie capaz de ditar o futuro do planeta (por pior que isso seja).

Correr é algo que fazemos naturalmente há dois e meio milhões de anos e evoluímos para isso. Se precisássemos de um calcanhar mais alto, com gel, bolhas de ar ou uma placa de amortecimento, a evolução nos teria dotado disso. Sapato deve servir para proteger os pés e não para deformá-los ou para atrapalhar a mecânica natural da corrida.

Mais informações sobre a nossa evolução como corredores neste artigo com Daniel Lieberman.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Nascido para Correr

A Experiência De Descobrir Uma Nova Vida
Christopher McDougall

Um blog de corrida descalça que se preze não tem como deixar de escrever sobre este livro. Lançado em 2009, ele se tornou referência para os novos corredores descalços, tornando-se, talvez, o principal divulgador do renascimento dessa técnica milenar.

Minha experiência com este livro foi bastante peculiar. Antes mesmo de lê-lo ou até mesmo de conhecê-lo, eu já estava bem convencido dos benefícios da mecânica da pisada com o antepé—a corrida natural. Eu estava treinando para o Ironman Florianópolis 2010, quando percebi que estava enjoando da minha playlist de mais de 2000 músicas. Corridinhas de hora e meia, duas horas e pedais de 3, 4 horas tornam qualquer repertório musical insuportável. Precisava ouvir outras coisas. Abri uma conta na Audible.com e comecei a baixar audiobooks. Stephen King e Douglas Adams foram minhas primeiras aquisições. No mês seguinte, com direito a mais dois livros e já tendo lido a respeito dele, baixei o “Born to Run: A Hidden Tribe, Superathletes, and the Greatest Race the World Has Never Seen.” Deixei ele separado para depois do Iron, quando eu começasse para valer meus treinos descalços.

Vale aqui um comentário sobre o título em português. Pelo que parece, a literatura está seguindo o caminho do cinema, onde os títulos dos filmes saem da cabeça do tradutor ou da distribuidora brasileira. Onde “The Green Mile” vira “À Espera de Um Milagre.” O que “A Experiência de Descobrir Uma Nova Vida” tem a ver com o subtítulo original? É para colocar nas pilhas de livros de auto-ajuda? Depois me chamam de metido a besta por ter ouvido o original em inglês. Se a tradução começou desse jeito…

Bom, mas vamos ao livro.

O livro começa com uma grande dúvida do autor: “Por que meus pés doem?” Christopher McDougall, um jornalista que já foi correspondente de guerra e que participou de diversos esportes radicais sem nunca ter se machucado, simplesmente não entendia por que o simples e natural ato de correr provocava tantas dores em seus pés. Seus médicos, os melhores da medicina esportiva, simplesmente diziam que correr exigia muito do corpo do praticante, que eventualmente cedia. McDougall ficou com isso entalado na garganta.

Durante uma viagem ao México, McDougall se depara com uma revista local que conta a história dos índios Tarahumara. Estes índios escaparam da invasão dos espanhóis simplesmente não os enfrentando. Viraram as costas e correram. Quanto mais os espanhóis adentravam o continente, mais os índios se distanciavam. Acharam paz numa região isolada, no noroeste do México, entre as escarpas das Barrancas del Cobre. A reportagem falava que esses índios corriam dezenas de quilômetros diariamente, mas em nenhum momento mencionava que eles viviam entrevados, com lesões incapacitantes. Ao contrário, entre seus melhores, havia cinquentões ganhando provas de 80 e 160 quilômetros. Para descobrir como eles conseguem este feito impensável, McDougall se embrenha numa região cercada de traficantes para poder conhecer seus segredos. E então começa toda a aventura.

McDougall passa a narrar diversas histórias com vários personagens pitorescos, como um tal de Caballo Blanco, passando por aborígenes da África do Sul, índios mexicanos e um professor de Biologia Evolutiva Humana de Harvard. As diversas histórias, interessantes e dinâmicas por si sós, são fragmentadas e intercaladas entre si, num crescendo que prepara o leitor para o desfecho: a tal corrida que o mundo jamais viu. Uma técnica manjada, mas que se mostra bastante eficaz neste tipo de história.

Até nos levar ao ápice da narrativa, McDougall passa pelos mais importantes temas que embasam a cultura e a ciência da corrida descalça. As raízes evolutivas, a teoria conspiratória dos fabricantes de tênis, as lesões comuns dos corredores, o treinamento de atletas de elite… Esses temas são tratados como personagens secundários—as histórias das pessoas é que são o centro do livro, fazendo com que a teoria seja absorvida pelo leitor praticamente sem querer. Não é, de forma alguma, um livro árido. Toda teoria científica é associada a história de alguém, o que dá uma característica humana ao livro, apesar de tratar de alguns tópicos que, se abordados da forma tradicional, se tornariam bem maçantes para o público leigo. Não tema: este livro é um romance de não ficção, não um ensaio científico. Spoiler: O ápice da narrativa não é a chegada da corrida e a ordem de chegada dos competidores, mas como a prova uniu participantes tão díspares e como eles se tornaram irmãos através da corrida.

Eu ouvi o livro durante meus treinos. Aliás, a narrativa empolgante tornou-se um estímulo a mais para que eu me animasse a vestir um short e uma camiseta, a tirar o tênis e, literalmente, por os pés na rua, por vezes até sem rumo ou relógio, pra me divertir durante uma boa corrida. Posso até ter melhorado meu tempo, mas minha meta agora é melhorar como pessoa. A corrida é só mais uma ferramenta para isso.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Abebe Bikila, o cara

Não há como falar de corrida descalça sem mencionar Abebe Bikila. Ainda mais depois da coincidência de ontem. Eu estava assistindo a seus vídeos no YouTube quando o Rodrigo (@rodsenna), um dos 4 pioneiros do nosso grupo de corrida, começou a tuitar os links para os mesmos vídeos que eu estava assistindo. Eis a nossa pequena homenagem.

Nascido na Etiópia, em 1932, no dia da maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, ele foi o primeiro bicampeão da maratona olímpica.

Descoberto por Onni Niskanen, um treinador sueco-finlandês contratado pelo governo etíope para pescar talentos, Bikila foi escalado para os seus primeiros Jogos Olímpicos praticamente na hora do avião decolar. O titular, Wami Biratu, fraturou o tornozelo num jogo de futebol, abrindo a vaga para Roma, em 1960.

Naquela época, tênis não eram comuns. Eram só para atletas. A Adidas, patrocinadora dos Jogos, só tinha mais alguns pares sobrando e Bikila não achou nenhum que lhe ficasse confortável. Poucas horas antes da prova, ele decidiu corrê-la descalço, como ele havia treinado na Etiópia.

Seu treinador o avisou sobre seus principais competidores, incluindo o marroquino Rhadi Ben Abdesselam, de número 26, um dos favoritos da prova. Acontece que Abdesselam, sabe-se lá por quê, não pegou o número da maratona e usou o número 185, das provas de pista. A largada foi dada às 5 e meia da tarde, devido ao calor do verão italiano. Lá pelo quilômetro 20, Bikila havia ultrapassado diversos corredores e nada de achar o número 26. Ele se afastou do pelotão, correndo ao lado do número 185, e ainda procurava pelo 26 à frente, sem saber que ele estava bem ali, ombro a ombro. Eles correram juntos até os últimos 500 m, quando Bikila deu seu sprint final, chegando 26 segundos à frente de Rhadi, com o recorde de 2:15:16.2. Foi o primeiro negro africano a ganhar uma medalha olímpica.

Nos anos que antecederam os Jogos Olímpicos de 1964, Bikila participou de diversas maratonas. Seu resultado mais surpreendente foi em Boston, em 1963, quando chegou em quinto lugar—a única maratona que ele participou e não ganhou!

Quarenta dias antes dos Jogos de Tóquio, durante os treinos, Bikila sentiu uma forte dor, tentou continuar correndo, mas teve um colapso. Foi operado devido a apendicite aguda e, ainda em recuperação, ele dava uns trotes à noite no hospital.

Ele foi para Tóquio, mas sua participação era incerta. Desta vez ele correu calçado, com um tênis Puma. Ele usou a mesma tática de 1960: acompanhar os líderes até o quilômetro 20 e depois deslanchar. Já no quilômetro 15, ele só tinha a companhia do australiano John Clarke e do irlandês Jim Hogan. No quilômetro 20, eram apenas ele e Hogan. Dez quilômetros depois e Bikila já colocava 40 segundos de vantagem no australiano e 2 minutos em cima de Kokichi Tsuburaya, o japonês que ocupava a terceira posição. Bikila entrou sozinho no estádio e venceu com o novo recorde de 2:12:11.2, fazendo uma inusitada sessão de alongamento logo após cruzar a fita. Cerca de três minutos depois, entravam Tsuburaya e, 10 metros atrás, o inglês Basil Heatley. Num emocionante bote nos últimos 150 metros, o inglês ultrapassa o anfitrião e chega em segundo, mas 4 minutos e 8 segundos atrás de Bikila, o primeiro bicampeão da Maratona Olímpica. O alemão oriental Waldemar Cierpinski também venceu duas vezes, em 1976 e 1980. Não teve a chance de tentar uma terceira vitória nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, devido ao boicote do bloco comunista.

De volta à Etiópia, Bikila foi recepcionado como herói pelo povo e seu imperador, do qual ganhou um singelo Fusca branco.

Nos jogos de 1968, correndo com o simbólico número 1, Bikila abandonou a prova no quilômetro 17, devido a uma lesão no joelho direito. Dias antes da prova, Bikila havia fraturado um pequeno osso do pé. Seu colega e compatriota Mamo Wolde venceu a prova e disse que, não fosse a lesão, Bikila teria faturado essa também.

Em 1969, um acidente com seu Fusca branco deixou Bikila tetraplégico. Após cirurgia na Inglaterra, sua condição foi melhorada, mas ele ainda permaneceu paraplégico. Seu treinador, Niskanen, o convenceu a competir no tiro com arco ("arco e flecha") para deficientes e Bikila brincava que iria vencer a próxima maratona olímpica numa cadeira de rodas.

Convidado especial nos Jogos Olímpicos de Munique, 1972, assistiu seu amigo Wolde chegar em terceiro e não conseguir igualar o bicampeonato. Após receber a medalha de ouro, o americano Frank Shorter foi apertar as mãos do famoso bicampeão.

Bikila morreu no ano seguinte, em 23 de outubro de 1973, aos 41 anos, devido a uma hemorragia cerebral, complicação do acidente de 4 anos antes. Compareceram ao seu funeral 75.000 pessoas.

"Homens de sucesso se encontram com a tragédia. Foi o desejo de Deus que eu vencesse as Olimpíadas, e foi o desejo de Deus que eu me encontrasse com meu acidente. Eu aceitei aquelas vitórias assim como eu aceito esta tragédia. Eu tenho que aceitar ambas as circunstâncias como fatos da vida e viver feliz."   Abebe Bikila

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Primeiro!

Este blog nasce poucas horas depois de uma oficina de corrida descalça que inventei de dar no Parque da Cidade (Brasília), no Dia das Crianças (12.out.2010). Uma data muito pertinente, já que as crianças aprendem a correr descalças, pisando certo. Os tênis bonitinhos, que elas ganham de presente, é que detonam a técnica natural delas.

Há cerca de um ano, durante os treinamentos para o meu primeiro Ironman, em Florianópolis, esbarrei em vários sites americanos sobre corrida descalça. Após ler um bocado, a ideia me pareceu bastante sensata. No entanto, não quis arriscar algo que mudaria radicalmente os treinos "no meio do campeonato". Adotei o princípio fundamental da corrida descalça, que é a passada curta e rápida, tocando primeiro o antepé e não o calcanhar. Corri o Iron calçado, mas apenas com um Asics Piranha SP 2, de 120 g.

Depois de Floripa, aí sim, me aventurei a correr completamente descalço. Li bastante, assisti muitos vídeos no YouTube e, acima de tudo, aprendi correndo.

Aprender a correr descalço não é engrossar a sola do pé. É aprender uma nova forma de passada. Ela é bem distinta da corrida calçada. Essa nova técnica é simples, mas não é fácil.

Uma coisa que a corrida descalça lhe dá é feedback praticamente imediato. Sem o ambiente controlado e amortecido do tênis, tudo o que você fizer de errado você sente. Bolhas são sinais que seu pé está derrapando em um determinado lugar. Dor na panturrilha é sinal que você se esforçou demais. E por aí vai. É muito difícil correr errado estando descalço se prestarmos atenção aos sinais. No entanto, usamos tênis e sapatos há muitos anos, e a mecânica da corrida calçada está arraigada nos nossos cerebelos. É preciso apagar a forma antiga e substitui-la pela nova.

Como nossos pés não estão acostumados a correr sem "muletas" (tênis), não podemos sair por aí em desabalada carreira. A nova passada ativa outros músculos, inclusive os intrínsecos dos pés, e precisa de tendões, ligamentos e fáscias resistentes. No momento, eles estão todos atrofiados, como quem passou anos com um braço engessado. Por isso, tudo tem que ser bem progressivo, devagar e sempre, caso contrário, podem surgir dores e lesões resultantes do que os gringos chamam de "too much, too soon".



Este, então, foi o primeiro post deste blog. Minha meta é escrever um artigo semanal, que pode ser sobre basicamente um de três temas:
  • história: personagens e feitos de corredores descalços;
  • ciência: os fundamentos evolutivos e teóricos da corrida descalça; e
  • técnica: pisada, passada, exercícios, erros comuns—a prática em si.
Espero conseguir alcançar o objetivo que almejo para este blog, que é fazer com que as pessoas se divirtam ao correr, conheçam e pratiquem a corrida descalça e que, finalmente, parem de olhar para mim como um maluco!